quarta-feira, dezembro 09, 2015

Entrevistas Antigas a Autores de BD (VI) - Luís Diferr



Na minha opinião, há aspectos positivos na análise comparativa de entrevistas antigas a autores de BD. Daí que continue, de tempos a tempos, a insistir na ideia.

Dentro desta óptica, reproduzo hoje a entrevista que fiz em 7 de Dezembro de 1985 - há trinta anos e picos - a Luís Diferr ou apenas Diferr - um autor que tem continuado a trabalhar na BD, embora espaçadamente, visto que a sua principal actividade - depois de abandonar a arquitectura -, a de professor do ensino secundário, é bastante absorvente.

Reproduzo em seguida a extensa entrevista publicada no jornal Diário Popular, no seu suplemento "Tablóide" (taBlóiDe):
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A BD é uma maneira de transmitir ideias e construir universos

- palavras de Diferr, arquitecto que faz BD

DIFERR é o nome artístico de Luís Filipe Torres Dias Ferreira, embora também já tenha usado a simples sigla DF (no fanzine Aleph, por exemplo) para assinar bandas desenhadas.

Nascido em Angola, mais precisamente no Lobito, Diferr está agora com vinte e nove anos, feitos a 28 de Maio. Fez um curso de Arquitectura no Brasil, na Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade de S. Paulo.

Radicado presentemente em Portugal, Diferr está ainda sem ocupação fixa. Por enquanto vai fazendo uns biscates. Por exemplo: acabou agora um argumento para enviar ao Concurso Goscinny.
Esclareço: este concurso é uma realização anual que tem, desta vez, a Editora Dargaud como responsável. "Já só me falta fazer a sinopse", diz-me ele. 
E a mim, já só me faltava esta: um tipo com invulgar talento gráfico, a escrever argumentos...
Não é que o caso seja inédito: Forest e Godard, por exemplo, excelentes desenhadores, têm feito argumentos para outros... Mas há um motivo para a minha impaciência: é eu saber que Diferr tem em seu poder um argumento do espanhol Sanchez Abulí para transformar em banda desenhada, e vê-lo dispersar-se com outras coisas! Por exemplo: a demonstrar, por puro gozo pessoal, o teorema de Fermat, ou a fazer esse tal argumento para um concurso...
Coisas que acontecem aos tipos eclécticos! Bem, já agora, aproveito para registar como é que lhe surgiu a oportunidade de fazer equipa com o famoso autor literário da série «Torpedo 1936».

- A história do Abulí foi-me enviada pela extinta Editora Metropol com quem tinha contactado no Salão de Barcelona em 1984. Eles compraram uma ilustração minha que, por sinal, apareceu na capa do último número da revista Metropol com uma distorção cromática horrorosa. Na mesma altura foi feito o contacto para a sequência de trabalho, a nível de produção de bandas desenhadas. Apesar de eu, de um modo geral, ser o autor dos argumentos das minhas histórias, chegou-se a um acordo no sentido de, pelo menos de início, eles me enviarem um argumento já pronto.
Em meados de Junho enviaram-me um do Abulí. Posso dizer o nome, se for preciso.

- Claro que é preciso.

- O nome é: «Qué hace una chica como tú en un sítio como este?»

- Qual é o género?

- Digamos que é uma história contemporânea que gira à volta de uma tipa que apanha um táxi, à noite, e, segundo as palavras de Abulí, no bairro baixo de Metropol.
Quanto à tal Metropol, eles tinham um certo hábito, na revista, de usar uma cidade fictícia com este nome. É uma história de «suspense», mas não propriamente hitchcockiana. Digamos que é uma coisa abuliana... daquele género que Abulí faz muito bem em meia dúzia de páginas.
Eu interrompi a história por ocasião da falência da revista. Mas, mais tarde ou mais cedo, tenciono acabá-la.

- Acho que não podes desperdiçar esta oportunidade. Uma história de Abulí é aceite por qualquer revista que se preze. Em qual é que pensas?

- Não tenho nenhuma encomenda explícita agora. Mas existe a possibilidade de publicar essa história tanto em Espanha como em França. Vamos a ver o que dá.

- Gostaria de saber quantas pranchas é que já estão feitas, e quantas faltam ainda. 

- Eu não trabalho por ordem de pranchas. Salto de um sítio para outro. Mas digamos que, numa média, tenho cerca de cinco pranchas. E a história tem seis. Falta muito pouco para acabar.

Vamos mudar de assunto. Vejamos o que, para um jovem arquitecto, pode significar a banda desenhada em termos práticos e a nível de linguagem.

- Em termos práticos, eu gostaria que significasse uma opção profissional. Em termos de linguagem, significa uma maneira interessante de dizer coisas, de transmitir ideias, de construir universos.
Hoje, eu já ultrapassei a fase do entusiasmo juvenil, entre aspas. Entusiasmo juvenil tanto no que diz respeito à minha própria produção, quanto à produção alheia.
No todo, em relação às duas coisas, sinto actualmente um certo desencanto, um certo cansaço. Na minha opinião, a BD está numa encruzilhada. Ela avançou até determinado ponto, e tem de encontrar meios de ir para diante: novas alternativas, novas formas de linguagem. Sem elitismo meu.

- A BD numa encruzilhada... Concordo com essa opinião, em especial no que se refere à galopante popularidade dos mini-computadores um divertimento absorvente. A moda chegou em força a Portugal. 
Achas que isso tem afectado o entusiasmo pela BD?

- Bem, eu estive dez anos ausente de Portugal...

- E pelo teu forte sotaque brasileiro vê-se (ouve-se...) que estiveste no Brasil.

- Sim, de facto vivi em S. Paulo desde Dezembro de 1974 até Junho de 1985. Em 84 estive aqui cerca de três meses. Aliás, foi nessa ocasião que fui ao Salão de Barcelona, como sabes, visto que estivemos no mesmo hotel.
É justamente por causa dessa minha prolongada ausência que eu não sei em que pé estão as coisas aqui em Portugal. Contudo quer-me parecer que existe uma certa receptividade, a julgar pelo número de álbuns que se publicam.

- Sintetizando, qual é a tua impressão no que se refere à situação actual da BD?

- Aqui?

- De uma maneira geral.

- Eu sinto que, de uma maneira geral, existe hoje em dia um relativo refluxo, em termos de consumo de banda desenhada. 
Acho que isso é notório principalmente em Espanha, mas também em França, até hoje uma espécie de Hollywood da BD mundial.

- Falemos novamente de ti. Lembras-te da primeira banda desenhada que fizeste?

- Vagamente, tinha onze anos e andava no Liceu Camões. Nessa altura já conhecia o Tintin e o Astérix, e já desenhava. 
Mas, sinceramente, não pensava fazer BD. O que realmente me decidiu a isso, o grande impacto, digamos assim, foi o Jacobs, mais precisamente «A Marca Amarela».
Em consequência, a primeira história que fiz tinha o título sintomático de «A Marca Vermelha». Fiz umas vinte e uma ou vinte e duas páginas, e a coisa, como tantas outras, ficou incompleta.

- Mas desde essa fase inicial até hoje deves ter finalizado umas tantas bandas desenhadas. Dessas, quantas é que já publicaste?

- Não muitas. Em 1971 saíram umas tiras minhas no jornal O Século. A tira reproduzida no suplemento "Século de Domingo" (edição de 21.11.71) foi a primeira coisa que publiquei. A personagem principal era um urso (a série intitulava-se precisamente «O Urso»), e alternava com o Zé Colmeia. Saía aos fins-de-semana, durante algum tempo. Não sei quanto, mas tenho aqui esta página de O Século datada de 13.2.72, em que a tira ainda aparecia. 
Em Julho de 1973 publiquei uma história no primeiro número do fanzine Aleph e outra no nº3 (Junho 74).
Depois fui para o Brasil, e em Maio de 75 entreguei uma história de umas dez páginas à Editora Abril, que foi publicada, se não me engano, em Outubro desse ano numa revista chamada Crás. Aliás, a revista acabou pouco depois. 
Aí houve um intervalo muito razoável, e só voltei a publicar nos quatro números da revista Garatuja, da qual eu era um dos editores. Essa revista fazia parte da chamada imprensa independente (independente das grandes editoras). O primeiro número da Garatuja saiu em Dezembro de 1979, o segundo em Fevereiro de 1980, o terceiro em Junho desse mesmo ano, e o quarto saiu três anos mais tarde.

Olho com curiosidade para as páginas amarelecidas pelo tempo, do saudoso jornal O Século de há catorze anos, que Diferr me mostra. Observo as duas tiras iniciais de "O Urso", com que se iniciava o jovem angolano (que aparecia numa foto ao lado das tiras). Quer dizer: as primeiras bandas desenhadas  (publicadas) de Diferr eram motivadas por um «herói» fixo.
Pergunto: 
«Gostas de criar personagens deste tipo»?

- Eu gosto, na medida em que permite trabalhar a personagem e o seu universo num espaço de tempo longo, de uma maneira que uma história única não permitiria.
Eu próprio não tenho trabalhado muito nesse esquema, apesar de já ter criado uma ou outra personagem com «vocação» fixa.
Por exemplo: estas minhas primeiras histórias curtas giravam à volta de um urso...
E a história para a Editora Abril, que era uma sátira à Ficção Científica, tinha como personagem principal um indivíduo chamado Plutónio, o Navegador Solitário.
Por falar nisso: os gajos da Abril compraram-me uma história que não foi publicada - pelo menos que eu saiba - até hoje.

- Quando foi isso?

- Em Abril ou Maio de 1982.

- Temos estado só a falar de ti. Falemos agora dos outros. Entre os desenhadores portugueses que conheces, haverá algum por quem tenhas admiração?

- Admiração, admiração mesmo?

- Enfim, que aches com nível suficiente para pôr em destaque.

- Hoje há muito poucos desenhadores, mesmo a nível mundial, que eu possa dizer que admiro. Para mim é uma actividade muito banal. Nessa circunstância, realmente em Portugal não há nenhum desenhador que eu possa dizer que admiro.
O que não significa que não goste do trabalho de X ou Y.

- E estrangeiros, para quem abres excepções?

- Na maioria são clássicos. Jacobs e Hergé, os dois geniais, Moebius,claro, Paul Gillon e, mais recentemente, Servais, Bilal também. E nos States, Crumb e Corben.

- Quanto a heróis de BD estrangeira...

- Obviamente, Blake e Mortimer.

- Não te estarás a esquecer de Tintin, já que colocaste Hergé no pódio dos geniais?

- Tintin, enquanto construção das histórias e, sobretudo, no que respeita à execução gráfica.

- Olhemos agora para o futuro. Haverá algum tema que te seduza, que desejes transformar, um dia, em banda desenhada?

- Há muitos.

- Por exemplo...

- Não sei. As minhas histórias são semiscarúnfias.

- O que é que isso significa?

- Vai ver um bom dicionário. A palavra existe, e significa o que ela é.                                                   

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Os interessados em ler as entrevistas anteriores (a Jorge Colombo, Luís Louro, António Simões, António Ruivo, António Jorge Gonçalves) poderão fazê-lo clicando no item Entrevistas antigas a autores de BD visível no rodapé

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