domingo, novembro 22, 2015

Príncipe Valente - Edição Apócrifa com balões de fala






Todos os conhecedores de BD (1) e, em especial, os admiradores do herói Príncipe Valente sabem que Harold Foster, criador da personagem, não gostava de usar balões de fala, apenas usava legendas didascálias sob as imagens, e era nelas que inseria os diálogos.


Assim, com esta fórmula clássica, as vinhetas desenhadas por Foster ficavam preenchidas com as suas magníficas imagens, sem qualquer outro elemento gráfico a colidir com as figuras dos intervenientes e das notáveis cenas panorâmicas.

Assim, tem permanecido a obra, desde a sua criação em 1937. Isto nas edições regulares, normais, autorizadas pela editora, a agência King Features Syndicate.

Todavia, folheando a revista brasileira sob análise - que comprei há muitos anos no Brasil, em São Salvador da Baía, num "sêbo", como chamam os brasileiros àquelas lojas que nós, portugueses, classificamos de "alfarrabistas" - é com espanto que se constata a inclusão sistemática de balões de fala, um abuso gráfico editorial que, aparentemente, não teve quaisquer consequências ao nível judicial (2), visto esta revista ter atingido pelo menos o nº14... 

E na capa está bem visível um conhecido selo com a legenda "Aprovado pelo Código de Ética"... Muito estranho.

Ficha técnica da revista:

Príncipe Valente Magazine - Nº14 (Data de edição não indicada)
Publicação da Rio Gráfica e Editora Ltda.
Redação, Administração e Oficinas: Rua Itapiru, 1209 - Rio de Janeiro, Brasil
Sucursal de S. Paulo: Av. Ipiranga, 1071- 2º andar, salas 211/212
Sucursal de Belo Horizonte: Rua Tupis, 203  

(1) Há em especial um, o meu amigo Manuel Caldas, que talvez fique indignado com este uso abusivo da obra de que ele é o maior admirador e especialista português.

(2) A menos que algum especialista brasileiro, visitante deste blogue (tenho a honra de ter vários) me contrarie, e me informe que os editores daquela revista tiveram problemas com a King Features Syndicate...     


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PRÍNCIPE VALENTE

Alguns elementos biográficos acerca do herói

"Não encontrei uma única conquista pela força que fosse duradoura. O que é que se mantém ainda das conquistas de Alexandre ou de César?
Com as conquistas só se conseguem tristes inimizades. Só utilizarei a minha espada em defesa da liberdade e dajustiça!"

Estas as belas palavras do Príncipe Valente, herói de gloriosas e fascinantes aventuras. Salpicadas também por episódios pitorescos, elas contribuíram para introduzir na banda desenhada o clima lendário dos grandes feitos da cavalaria medieval, e dos elevados princípios dos seus cavaleiros andantes.

Aguar, rei de uma antiga cidade nórdica de existência incerta, chamada Thule, vê-se obrigado a lutar contra os seus implacáveis inimigos, à frente dos quais está o usurpador Sligon. Mais fortes na circunstância, estes empurram-no para o mar. Como única saída, o rei, a rainha e um principezinho chamado Valente embarcaram num veleiro, com um pequeno séquito de amigos fiéis, procurando refúgio seguro ao longo das falésias da Bretanha.  

Assim começava o primeiro episódio da saga do Príncipe Valente, em 13 de Fevereiro de 1937. Para as impressões iniciais, esta cena não era muito favorável, mas em breve elas seriam melhoradas, ao ver-se o pequeno grupo, depois dessa viagem marítima bastante acidentada, combater e vencer os semi-selvagens bretões que os haviam atacado.

Após umas tantas peripécias relativamente breves, o pequeno príncipe de Thule cresce no curto espaço de alguns episódios. Quando se despede do pai, deixando para trás o país pantanoso, Val é já um desenvolvido adolescente.

Esta transformação, que ocupou um pequeno período da série, verificou-se entre 13/2/1937 e 23/4/1937, no tempo real.
Observando-se a última vinheta da décima primeira prancha, vê-se que Val já adquiriu o aspecto que o iria tornar famoso ao longo dos anos. Sente-se uma certa pressa na transformação, como se o seu criador tivesse acedido, quase a contra-gosto, em debruçar-se sobre essas fases da infância e adolescência do herói. 

Apesar de impaciente, Foster não deixa de enriquecer essas primeiras páginas com imaginosos epidios. O encontro com Horrit, a feiticeira, mãe do monstruoso Thorg, é um deles.
"Não há para o homem maior infelicidade do que conhecer o seu futuro", diz-lhe ela.
Mas a curiosidade de Val resiste à lúcida advertência, e ouve o que Horrit lhe diz:
"Aguarda-te já um grande desgosto. Irás ter muitas aventuras, travarás muitas lutas, e jamais encontrarás a felicidade".

Essas profecias não estão totalmente longe da realidade: quanto ao às grandes lutas, esse será o "leit motiv" da saga do Príncipe Valente; por outro lado, a sua vida tem tido realmente muitas coisas más de que a mais marcante terá sido a morte da mãe, que sucumbiu ao clima hostil do país onde se haviam refugiado. 
O seu exílio, que durou doze anos, e a morte de Ilene (Helena na versão portuguesa), o seu primeiro amor, foram outros tantos episódios envenenados de tristeza e revolta. Mas a vida do príncipe teve já momentos de felicidade, de que um dos mais importantes terá sido a participação numa pequena cerimónia que jamais esqueceu: o Rei Artur, tocando-lhe no ombro com a sua famosa espada, armou-o Cavaleiro da Távola Redonda, como reconhecimento da sua bravura e lealdade.

Outro desses momentos foi o primeiro encontro de Valente com Aleta, e, após muitas peripécias, o casamento. Também o nascimento dos seus filhos contribuíram para que, feito o balanço geral, o prato da balança penda claramente para o lado da felicidade.

No que se refere a coisas do coração, que são sempre, se não agradáveis, pelo menos emocionantes, Sir Valente também já teve a sua conta. Não é que tenha qualquer semelhança com Sir Gawain, o incansável conquistador, claro. Mas, entre desgostos, desenganos amores exaltados, de tudo conheceu o coração do príncipe.

No princípio, foi Ilene, a bela jovem de cabelos cor de mel, o saboroso primeiro amor de Valente, e também, simultaneamente, o grande amor de Arn. Mas Ilene morreu, e os dois príncipes, que apesar de rivais se haviam tornado amigos, construíram um monumento de pedra em sua memória.

É ainda de referir a sua fugaz atracção amorosa pelas irmãs Sombelene e Melody. Mas Melody apaixonar-se-ia por Hector e Sombelene por Angor Wrack, ex-captor de Valente. Por acaso será com este casal que Valente celebrará os seus dezoito anos.

Na realidade, porém, no seu coração havia persistido sempre uma visão, quase irreal, de uma loura jovem que lhe dera água quando, morto de sede e exausto, fora ter a uma misteriosa ilha.
A única prova de que não se tratara de uma visão, fora o papel que ficara no barco, assinado por Aleta.
O encontro seguinte seria bem real, completamente estragado por um mal-entendido. E finalmente, após raptá-la da sua corte, levado por negras intenções, Valente acabaria por ceder à inteligência, meiguice e infinita paciência de Aleta que, durante a longa viagem imposta pelo príncipe,lhe suportou as injustas afrontas. Casaram por fim, como era de esperar, e desta feliz e inquebrável união nasceram quatro filhos, entre os quais duas gémeas.

Ao fim de todos estes anos, o Príncipe Valente vai tranquilamente envelhecendo. Os seus filhos cresceram e Arn, o mais velho, é já o seu sucessor nas deambulações pelo mundo.
(Este, que é um dos aspectos mais originais desta banda desenhada, teve em Derib um seguidor, através de Buddy Longway e do seu filho).
As aventuras de Arn são o contraponto aos vários flashbacks provocados pelas recordações de Valente. Aventuras nunca vistas na juventude do Príncipe, vão assim permitindo mantê-lo no centro do interesse da série, tornando a sua vida num longo mas nunca fastidioso percurso.

A história do Príncipe Valente nunca sofreu qualquer interrupção. John Cullen Murphy, que ganhara nome com a personagem Big Ben Bolt (Luís Euripo em Portugal), fora substituindo gradualmente Harold Foster, tendo-lhe sido entregue definitivamente a série em 1971.

Murphy, que inicialmente seguia com razoável fidelidade o estilo do Mestre, começou a pouco e pouco a derivar para o seu próprio estilo, bem menos académico e perfeccionista.
Quanto a isso, Foster foi bastante benevolente quando disse, há uns anos: "Pelas cartas que recebo, sei que os leitores estão satisfeitos e tudo está a correr muito bem. Estou até a sentir uma pontinha de ciúme."
Seria interessante saber se manteve esta opinião até ao fim da vida. Pela nossa parte, pensamos que haveria muitos desenhadores bem mais adaptáveis ao estilo de Foster do que John Cullen Murphy, que acabou por perder o seu próprio estilo e não conseguiu fazer esquecer o criador original.
Geraldes Lino

Nota: Este artigo foi originalmente publicado na rubrica "Banda Desenhada" do extinto semanário O País, datado de 30 de Setembro de 1982.    

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HAROLD FOSTER

Síntese biobibliográfica


Harold Rudolf Foster, Halifax, Nova Escócia, Canadá, 16 de Agosto de 1892 - Florida, Estados Unidos da América, 25 de Julho de 1982.

Nascido no Canadá, Foster deixou de estudar aos dezoito anos e começou a trabalhar para ajudar a família. Teve várias actividades, até pesquisador de ouro, antes de emigrar para Chicago, para onde viajou montado numa bicicleta.

Naquela cidade americana decidiu inscrever-se no Art Institute, em seguida na National Academy of Design e depois na Chicago Academy of Fine Arts. 

Quando terminou estes estudos artísticos, Foster trabalhou como ilustrador e publicitário. Até que teve oportunidade de iniciar-se na banda desenhada, numa adaptação da obra Tarzan, primeiro num curto período entre Janeiro e Março de 1929, mas em definitivo a partir de 1931, a trabalhar na personagem para os suplementos dominicais jornalísticos.

Em 1937 opta por criar o herói medieval Prince Valiant na sua totalidade, argumento e desenho. No biénio 1944-45, Foster acrescentou à prancha do príncipe uma tira, também localizada na mesma época, a que deu o título de Castelo Medieval.

Tratou-se de um trabalho esporádico, visto que o principal consistia em realizar semanalmente a prancha dominical dedicada ao Príncipe Valente, para o que chegou a trabalhar cinquenta horas por semana.

Na década de 1960, já quase septuagenário, Foster apoiava-se cada vez mais nos seus assistentes, até que, em 1971 ele cessou em definitivo de desenhar a série, embora continuasse a fornecer layouts a lápis ao seu sucessor, John Cullen Murphy até 1980. Mas foram de sua autoria muitos dos story lines (resumos) até meados dos anos 1970.

Como é do conhecimento geral, Foster nunca usou balões (nota do presente blogger: vi uma vez um, não me recordo em que episódio). Essa sua opção pelo uso em exclusivo das legendas talvez tenha sido por influência da BD clássica europeia.

Como seria de justiça, Prince Valiant proporcionou ao seu criador vários galardões, entre os quais o categorizado Reuben Award.

(Elementos coligidos em The World Encyclopedia of Comics, coordenada por Maurice Horn, obra editada por Chelsea House Publishers, Philadelphia, em 1998)      

5 comentários:

Manuel Caldas disse...

Não tem nada de estranho, meu caro Geraldes Lino. E eu nem chamaría "apócrifa" à edição. A ela faço uma referência (por coincidência, exactamente o mesmo número que aqui mostras), e dela reproduzo uma página, no meu livro "Foster e Val", na página 115. Claro que a King Features não criou problemas nenhuns à editora. O que a eles interessava (e interessa) é vender o material, indiferentemente da forma como se publicasse. Por outro lado, a Rio Gráfica e Editora não foi a única editora a cometer a heresía de introduzir balões no PV. Em España, nos anos 1960, a Editorial Dolar fez a mesma coisa. Só não te mando uma amostra porque por este meio não é possível.

Geraldes Lino disse...

Caro amigo Manuel Caldas

Muito grato te fico por estas tuas pertinentes observações. Outra coisa não seria de esperar do maior especialista português (quiçá de todo o mundo) da personagem Príncipe Valente e do respectivo autor, Hal Foster.

Um grande abraço.

Manuel Caldas disse...

Já aqui há tempos o disse numa entrevista não sei a quem: o meu maior anseio é um dia ser considerado o maior especialista da obra do Foster. Mas, claro, custa aos comuns mortais que tal fenómerno possa ser português...
Manuel Caldas (com um sorriso, de inocência)

Santos Costa disse...

Caro Lino

Agradeço-te teres enviado pessoalmente - e por e'mail - a referência a este post. Já aqui tinha vindo observar esta perplexidade (embora não se afigure que o seja, uma vez que o autor já não é vivo), muito embora também saiba que a obra pertence à KFS, a qual disporá dela como bem entende - o que não concordo, para ser sincero.
Este "atropelo" não é comparável àquelas horríveis amputações e alterações no próprio desenho, feitas aqui há uns anos, no tempo em que a Censura ordenava, sem que o autor fosse chamado a pronunciar-se. E, ainda pior, quando as próprias vinhetas rectangulares eram transformadas em quadrados, ou ainda quando eram ampliadas com traços feitos à revelia do autor.
Enfim, estou convencido que, fora da sua época - e se ainda fosse vivo - o próprio Foster teria quebrado aquela regra, uma vez que era comum, quando iniciou a saga, a utilização do texto colocado infra, ainda com ãs caixas de texto nos cantos sem tocarem as imagens.
Aqui, com Foster, nem se podem chamar didascálias porque, como sabes, estas não contêm as falas das personagens, uma vez que são meramente descritivas da acção, como no teatro; pelo contrário, Foster incluía a descrição e os diálogos, se bem que separados pelo tipo de letra.

Abraço
Santos Costa

Santos Costa disse...

Lino & Caldas

Aproveito o ensejo para dizer que, enquanto vivo, Foster foi um autor que foi adaptando a arrumação e o enquadramento nas vinhetas nas suas páginas, originalmente destinadas a jornais com determinados formatos. Assim é que, raro se encontram os trabalhos divididos fora das três tiras, sendo estas de três ou de duas vinhetas, o que dá às pranchas uma plasticidade ímpar.
Utilizando uma linguagem cinematográfica, isso não o impediu de desenhar com grandes planos, planos médios e americanos e com a profundidade de campo que tão belíssimos pormenores nos permitem, mais do que ler, visionar as sequências com acuidade e atenção.
Quando o formato se alterava, principalmente nos tablóides, sempre havia ao recurso do preenchimento de espaço com rodapés ilustrados - alguns de grande qualidade gráfica - como o Manuel Caldas bem apontou nas anotações feitas ao volume 1947-1948.

Bom trabalho para os dois
e um abraço, naturalmente