domingo, outubro 11, 2015

II Guerra Mundial - Registo de uma antiga exposição de BD



Em 2015 passaram-se setenta anos - uma conta redonda - sobre o fim  da II Guerra Mundial (1939-1945).

Pela parte de entidades oficiais ou privadas, não me apercebi que tenha havido em Portugal eventos dedicados a comemorar, através da BD, o fim desse flagelo bélico, ao contrário do que aconteceu em 1995, quando se comemoravam cinquenta anos após o fim desse conflito mundial, numa exposição de banda desenhada comissariada por mim - em representação do Clube Português de Banda Desenhada - na Biblioteca-Museu República e Resistência.

Ocorreu-me recuperar esse meu trabalho pelo facto de ter presenciado ontem, na Bedeteca da Amadora, uma exposição centrada na 
I Guerra Mundial, com bandas desenhadas da autoria de Jacques Tardi e de Stuart Carvalhais, autores de BD representando dois dos países que participaram na contenda, França e Portugal.

Sem pôr em causa a qualidade da exposição bi-partida de que falei aqui no blogue (duas postagens antes), questiono a pertinência da comemoração, sendo que o normal é tal acontecer em anos redondos passados sobre o princípio ou o fim do acontecimento.

Ora se a I Guerra Mundial teve lugar entre 1914 e 1918, e a seguinte aconteceu nos anos que decorreram de 1939 a 1945, justificar-se-ia que se desse preferência a este último acontecimento bélico para tema da citada exposição, visto no presente ano perfazer uma conta redonda o seu final.

Nota: As imagens que ilustram a postagem são algumas das que constaram no catálogo da exposição "A II Guerra Mundial na Banda Desenhada", editado em 1995.

Reprodução das respectivas legendas: 

1 - "Siegfried Negro em Terra Branca", por Diniz Conefrey
2 - "Führer", de Luís Louro (desenho) e António (Tozé) Simões (arg.)
3 - "Passagem por Lisboa", em desenhos de Paulo Silva, com base num argumento de Eduardo Geada, em texto final de Paulo Pereira
4,5,6 - 
- Conversas de guerra em "120, Rue de la Gare", de Tardi
- Charles Chaplin no filme "O Ditador", visto por José Ruy
- Hitler visto por Frank Bellamy
7 - Quando o Super-Homem entrou na guerra
8 - Nada melhor que o Capitão América para assustar Hitler
9,10 - 
- "Maus", tremenda visão de guerra, pelo artista de origem judaica Art Spiegelman. 
- Pormenor da obra biográfica "Jorge Dimitrov, herói internacionalista, da autoria de José Ruy
11 - Imagem realista da guerra, pelo talento gráfico de Russ Heath
12 - Contracapa com reprodução de pormenor da obra "La Bête est Morte! - La Guerre Mondiale Chez Les Animaux", por Calvo (Edmond-François Calvo), desenhos, e Dancette (Victor Dancette), argumento
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Reproduzo (parcialmente) o texto do catálogo:

"(...) Amiudadas vezes [a BD] procura e atinge finalidades culturais, retratando os ridículos humanos ou explorando a crítica social. E, graças à riqueza da expressividade que lhe é permitida pela associação do binómio texto/imagem, tem adaptado à sua linguagem importantes obras de teatro, de ópera (ou teatro lírico), de cinema, de literatura. 
Alguns dos seus autores, mais atentos e oportunos, têm aproveitado para tema factos da História da Humanidade, tanto nos seus aspectos de projecção individual, como nas suas maravilhosas sagas ou impressionantes tragédias. E nesses factos inserem-se os grandes conflitos bélicos.

Com efeito, as peripécias militares, terrestres, aéreas e marítimas, deram azo a inúmeras obras. Algumas delas atingiram superior qualidade estética e literária, quer em registo realista quer ficcional, destacando-se "Maus" (de Art Spiegelman) e "La Bête est Mort (de Calvo), duas extraordinárias alegorias em estilo animalista; "High Commands" (de Frank Bellamy), "Terry e os Piratas", (de Milton Caniff), "Os Escorpiões do Deserto" (de Hugo Pratt), "Ernie Pike" (também de Hugo Pratt, mas só no desenho, e Hector Oesterheld, autor do argumento), "Buz Sawyer" (de Roy Crane). Ou, em estilo mais popular, "Sgt. Fury" (de Jack Kirby, desenhador, e Stan Lee, argumentista), "Sgt. Rock"(de Ross Andru, Mike Esposito, Joe Kubert e outros), "Buck Danny" (de Victor Hubinon, desenhador, e Jean-Michel Charlier, argumentista), não sendo possível esquecer o "nosso" "Major Alvega" (na realidade, mera adaptação da série inglesa "Battle Britton", criada em 1956 por Geoff Campion, desenho, e Mike Butterworth, argumento). 

Um aspecto muito curioso é o que se prende com o facto de alguns autores de  séries famosas terem conseguido imiscuir os seus "heróis de papel" no conflito posterior, embora de forma simbólica, em subtil transposição para diferentes cenários. É o caso de Harold Foster, ao pôr o Príncipe Valente a combater contra os Hunos, invasores da Bretanha; de Hergé, com Tintin, em "O Ceptro de Ottokar"; de Edgar Pierre Jacobs, através de Blake e Mortimer, em "O Segredo do Espadão", ou de Jesús Blasco, com o seu herói Cuto em "Tragédia no Oriente".

Alguns autores "forçaram" os seus heróis a tomarem partido: Burne Hogarth foi um deles, ao criar o episódio "Tarzan e os Nazis". Outro foi Alex Raymond, ao fazer Flash Gordon regressar do Planeta Mongo, a fim de vir auxiliar na defesa contra o imperialismo. Também Phil Davis, desenhador, e Lee Falk, argumentista, criadores de Mandrake, puseram o célebre mágico a trabalhar para o "Intelligent Service", numa aventura datada de 1941, onde ajuda a desmantelar uma importante organização de espionagem nazi.

Nesta galeria de heróis, vários outros pegaram em armas. Alguns exemplos mais: o pugilista Joe Palooka (cujo nome em português passou a ser Joe Sopapo), Dick Tracy, Jungle Jim.

Ao fascínio do tema não resistiu o Super-Homem, famoso super-herói americano, que no auge do conflito trava contenda com nazis, de onde sai obviamente vitorioso. O que levou Goebbels a afirmar publicamente: "Este super-homem é judeu".
Outro super-herói, o Capitão América, foi criado em Março de 1041 - dez meses antes de os Estados Unidos defrontarem o eixo germano-nipónico - com o fito exclusivo de se tornar símbolo da intervenção americana. Para não haver quaisquer dúvidas, o seu vestuário reproduz, visivelmente, a bandeira americana.

Ainda no que se refere ao género de super-heróis "made in U.S.A", mais alguns foram criados propositadamente para fins patrióticos, prontos a entrarem na batalha. Até os nomes tinham conotações bem explícitas: Captain Battle, Captain Courageous, Captain Freedom, Major Victory, Major Liberty, U.S. Jones, Uncle Sam, American Eagle, e mais vários.

Outro aspecto curioso dentro desta corrente dos comics americanos tem a ver com o facto de também terem surgido estrategicamente super-heroínas patriotas. Os seus nomes eram, de certa maneira, o reverso da medalha de alguns dos seus confrades masculinos: Miss America, Yankee Girl, Liberty Belle.

Até mesmo pelo burlesco, alguns autores não deixaram de aproveitar o assunto. O italiano Bonvi tornou-se bem conhecido com a engraçada série "Sturmtruppen". Mas é nas numerosas revistas inglesas que se vão encontrar várias personagens desenhadas em estilo caricatural, de grande comicidade, actuando em regime de farsa. Destacam-se, entre elas, um impagável duo formado por Basil e Bert, detectives mobilizados pelos serviços secretos para a Dictatorland, onde defrontam um tal Ateful Adolf, cuja melena caída sobre a testa, mais o irritante bigodinho, o identificam iniludivelmente.

No pólo oposto estão alemães e italianos. No que se refere à Alemanha, é sintomático que a nação mais directamente implicada no conflito não tenha tido histórias de guerra em bandas desenhadas, por expressa vontade de Hitler.

Quanto à Itália teve nesse período em publicação várias revistas (Balilla, Corriere dei Piccoli, Il Vittorioso, Topolino), onde se manipulava a BD americana importada: Mandrake, graças a traições da tradução, aparece como enviado a Berlim para derrotar um grupo de espiões ingleses; Tarzan, num episódio assinado por um encapotado Ulterius, é apresentado como herói germânico; Brick Bradford passa a ser desenhado pelo italiano Carlo Cossio, sendo rebaptizado como Guido Ventura e, logo de seguida, como Giorgio Ventura, visto que Guido é nome hebraico; Kurt Caesar, outro autor comprometido com o regime de Mussolini, cria uma série de aventuras sob o título "Romano il Legionario".

Já em 1942, para além de pressões de vária ordem exercidas sobre os autores de BD, os censores atingem o máximo do ridículo:determinam a abolição dos "balões" por os considerarem invenção americana (o que não é verdade), e fazem-nos substituir pelas, segundo eles, "italianíssimas" didascálias.

Do que não restam dúvidas é que o regime fascista italiano considerou a banda desenhada como uma das mais populares e eficientes formas de propaganda, e utilizou-a como tal, não hesitando em aproveitar séries e "heróis" estrangeiros, depois de os adaptar aos seus pontos de vista políticos e belicistas.

No que concerne aos autores portugueses de BD, é notória a exiguidade de produção sobre o tema, quiçá por falta de motivação devido à neutralidade portuguesa. De facto, entre 1939 e 1945 publicaram-se, parcial ou totalmente, as revistas Senhor Doutor, Papagaio, Mosquito, Pirilau, Aventuras, Diabrete, Faísca e Lusitas. Nelas colaboraram vários prestigiosos autores, nomeadamente António Barata, Eduardo Teixeira Coelho, Fernando Bento, Jayme Cortez (que posteriormente adquiriria nacionalidade brasileira), José Garcês, José Ruy, Vítor Péon e Vítor Silva, e nenhum deles mostrou interessar-se pelo assunto nesse período.

Só depois de terminada a guerra apareceriam as primeiras histórias nela baseadas. Em 1947, Vítor Péon executa "Missão Perigosa", para o Diabrete. É ele também que que, passados uns anos, agora no Mundo de Aventuras - e já em parceria com o argumentista Edgar Caygill (Roussado Pinto) - volta aos cenários bélicos com "Don Clay"- 3 Vidas e um Segredo" (1951/52) e "Perigo no Ar" (1953).

Também José Ruy viria a tocar na matéria mais tarde, nas décadas de 70 e 80. E fê-lo por esta se inserir em alguns dos temas por ele tratados.
A primeira abordagem foi numa das seis pranchas que constituem o episódio "Da Guerra Nasceu Uma Flor - A Cruz Vermelha", surgido em Dezembro de 1978 no Mundo de Aventuras (Número Especial de Natal), com publicação repetida, no ano seguinte, nas revistas Tintin e Humanidade (órgão da Cruz Vermelha Portuguesa).

Referência à guerra - apenas três vinhetas dessa vez - fez de novo José Ruy na obra biográfica "A Vida Maravilhosa de Charles Chaplin", impressa inicialmente no Spirou (1979 - 2ª série) mas voltada a publicar (em 1986) num álbum, e na revista Trujba da Associação de Amizade Portugal-Bulgária.

Editada em 1983 pelo Comité International de la Croix-Rouge, é igualmente dele "A História da Cruz Vermelha", pequeno opúsculo (ou mini-álbum) de quatro páginas, uma das quais no ambiente do conflito.

Com Jorge Dimitrov-Herói Internacionalista", obra pré-publicada num jornal lisboeta já extinto (O Diário), e em álbum no mesmo ano de 1986, volta a ser citada a contenda mundial, numa das páginas daquela biografia ilustrada.

Pela quinta e última vez, em 1989, José Ruy teve oportunidade de interpretar graficamente a II Guerra Mundial numa das páginas da sua História de Macau.

Chico Lança, no fanzine A Purga (Nº2 - Dez. 79) é o primeiro jovem a mexer no assunto, criando uma sequência em duas pranchas, onde faz um trágico paralelo entre as duas guerras mundiais.

Também muito jovem era Diniz Conefrey quando, em 1982, no seu fanzine Ktulu, escreve e desenha a história "Siegfried Negro em Terra Branca". Um ângulo de apreciação inesperado, visto que os protagonistas principais são alemães, defrontando dificuldades na retirada da Rússia, em pleno Inverno.

De Louro & Simões - autores então em início de carreira - é o episódio em oito pranchas intitulado "Führer", publicado em 1985 no Mundo de Aventuras.

José Garcês, a desenhar sob argumento de A. do Carmo Reis, focou quase imperceptivelmente o tema, no 4º tomo da "História de Portugal em BD" (1989). É uma única vinheta, onde se vêem tropas portuguesas a desfilar sob o Arco do Triunfo, a comemorar o fim da guerra.

Por último, e bem recentemente (em 1994), foi editada em álbum a obra "Passagem por Lisboa", baseada no filme homónimo de Eduardo Geada, estreado no mesmo ano. O guião de Paulo Pereira, e os desenhos de Paulo Silva, descrevem peripécias na capital portuguesa onde, em pleno conflito, se misturam espiões, uma actriz e um actor de cinema, ao lado de figuras da realeza britânica, em cenas paralelas à guerra, numa rápida, misteriosa e conturbada passagem por este território neutro.

Cenas suficientemente sugestivas - como tantas outras de obras anteriormente citadas -, para ficarem registadas nos quadradinhos sequenciais da Banda Desenhada, e constituírem fascinante registo gráfico, realista ou imaginário, da II Guerra Mundial.

Geraldes Lino
Clube Português de Banda Desenhada
1995               

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