segunda-feira, abril 13, 2015

Coleccionadores e Colecções de BD (XIV) - Manuel Caldas
















Mais do que coleccionador de BD, Manuel Caldas é  um estudioso, especializado no autor Harold Foster e na personagem Príncipe Valente, além de ser igualmente um editor de banda desenhada de elevado gabarito, tanto no capítulo inicial de faneditor - o seu fanzine Nemo foi um momento alto da fanedição portuguesa - como no de editor profissional, com grande prestígio em Portugal e em Espanha.

Quando o entrevistei em 1988, para a revista (já desaparecida) Coleccionando, o dito prestígio estava a começar a consolidar-se.

Eis o que escrevi há quase trinta anos (a fim de facilitar a leitura, reproduzo tudo, título e entrevista):
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Falando de colecções de BD

- GOSTARIA QUE FOSSEM PARAR 
ÀS MÃOS DE QUEM AS ESTIMASSE
COMO EU AS ESTIMO 

- é o desejo de Manuel Caldas


Manuel António Barbosa Caldas da Costa é o nome completo do nosso entrevistado de hoje. Mas ele usa abreviá-lo para Manuel Caldas, ou «disfarçar-se» sob o pseudónimo de M. Nöel Hantónio.

Nasceu em Paredes de Coura, a 6 de Agosto de 1959, mas vive desde há doze anos na Póvoa de Varzim, onde exerce a profissão de operário têxtil.

Indelevelmente ligado a um dos melhores fanzines (1) sobre banda desenhada editados até hoje entre nós, o NEMO, Manuel Caldas tornou-se especialmente notado pelo seu amor à personagem Príncipe Valente e respectivo autor, Harold Foster.
Primeiro, através de uma carta publicada na rubrica «O Mosquito Expresso» (na revista Mosquito nº12 - V Série - Janeiro de 1986) em que se considerava «até prova em contrário, o entusiasta número um e a autoridade máxima sobre a obra prima de Harold Foster».

A curiosidade dos bedéfilos ficou aguçada em relação ao autor de tão audaciosos auto-elogios; posteriormente, com o seu fanzine Nemo, aparecido em Março de 1986, Manuel António B. C. Costa passava a ser um nome com prestígio no círculo restrito dos estudiosos, críticos e coleccionadores de Banda Desenhada. 
E quanto aos seus conhecimentos sobre a obra de Harold Foster, eles viriam a demonstrar ser profundos no Vol, 16 (Nov. 86) da Antologia da BD Clássica (Editorial Futura), dedicado ao Príncipe Valente; e reforçava-se essa constatação através do nº4 (Especial) do Nemo (Fev. 87), pela sua impressionante remontagem das onze primeiras pranchas de Prince Valiant, mostrando-as tal como tinham sido originalmente concebidas pelo autor, sem quaisquer margem para dúvidas, em face do rigor das suas anotações complementares. Não falando já da qualidade da tradução e legendagem, ambas de sua autoria!

Os conhecimentos de Manuel Caldas Costa sobre o tema voltariam a ser comprovados à saciedade pela Edição Extraordinária do Fanzine Nemo (Out./Dez. 87), que complementava a exposição «50 Anos de Príncipe Valente» - também por ele realizada -, integrada no «VI Festival de Banda Desenhada - Lisboa 87». 
Não se dando por satisfeito, Manuel Caldas tem em preparação uma extensa biografia do Príncipe Valente, na esperança de que venha a ser editada em livro. À falta de editor, tenciona fazê-lo ele próprio, com os seus parcos meios económicos, nem que seja em «offset-fotocópia» como ele diz, ou «offset de escritório», como também é vulgar chamar-se ao mais barato sistema de reprodução que conhecemos.

O curriculum anteriormente explanado foi razão mais do que suficiente para fazer surgir, na mente do autor destas linhas, a ideia de entrevistar o muito elogiado editor do NEMO. Até que a oportunidade surgiu aquando duma sua vinda a Lisboa.

- Manuel Caldas: quando começou a coleccionar revistas de banda desenhada?

- Desde há uns quinze anos atrás.

- O que é que começou por coleccionar: revistas ou álbuns?

- Comecei por coleccionar bandas desenhadas recortadas de jornais. Só depois, quando tive mais dinheiro, é que me virei para as revistas.

- Que bandas desenhadas é que começou a recortar?

- Todas as do suplemento de Domingo do jornal O Primeiro de Janeiro: Príncipe Valente, claro, O Coração de Julieta, os Clássicos Disney e o Reizinho.

- Que idade tinha nessa altura?

- Devia estar por volta dos dez anos. Na altura também coleccionava as tiras diárias do Século.

- Quais?

- Rex Morgan, Steve Roper, Os Silvas e a Rua da Esperança, 13.

- Como é que tem guardado todas essas páginas e tiras?

- Tenho-as em pilhas. Só as do Príncipe Valente é que tenho coladas em folhas de papel cavalinho. Mas as do Século já me desfiz delas há muito tempo.

- Lamento a sua decisão. Paul Gillon não merecia um tão grande desinteresse... Ainda por cima, «13, rue de l'Espoir» nunca foi editada em Portugal senão nessas tiras. Não achou que tivessem qualidade suficiente para as guardar?

- Eu considerava. Mas as do Primeiro de Janeiro eram coloridas, e atraíam-me mais do que as do Século, que eram a preto e branco. Ou não fossem tiras diárias.

- Falemos agora de revistas. Das que coleccionava inicialmente, qual a que tem maior significado para si?

- Era o Mundo de Aventuras, que comecei a coleccionar desde que voltou ao número um.

- Quer dizer que foi essa controversa renumeração que o motivou a começar a coleccionar o Mundo de Aventuras?

- Não absolutamente. Foi mais porque o regresso ao nº1 coincidiu com um grande aumento de qualidade, antes eles não respeitavam a composição original das pranchas e das tiras.

- Quais as colecções portuguesas que possui?

- Tenho pouca coisa: a Fagulha, o Jornal do Cuto, o Tintin, o Mundo de Aventuras, da segunda numeração, o Grilo da Portugal Press e as duas séries do Spirou.

- E estrangeiras?

- Só tenho o Nemo The Classic Comics Library. E falta-me o número três.

- Entre essas colecções que possui, quais as que considera mais valiosas?

- O Mundo de Aventuras. Em parte também o Jornal do Cuto, isto em relação às portuguesas.
Quanto às estrangeiras, os Almanaques do Gibi Nostalgia, brasileiros, e a revista Nemo americana. E posso referir também o catálogo Graphic Gallery de Russ Cochran, onde se reproduzem muitas pranchas a partir dos originais.

- Qual é a revista de BD mais antiga que possui?

- É um número do Mosquito que eu tenho para lá metido nalgum sítio. Julgo que é do 1º Ano.

- Entre as suas colecções, qual a que lhe deu, ou está a dar, maior dificuldade em completar?

- Quer dizer: eu só ando a completar o Tintin,de que aliás só me faltam aí uns seis números. Não me tenho é disposto, ainda, a ir procurá-los.

- Está neste momento a coleccionar alguma revista portuguesa de BD?

- Os Cadernos de Banda Desenhada. Que é a única... Bem, é uma coisa boa que nós temos: só temos uma, mas é boa.

- E estrangeira?

- O Nemo The Classic Comics Library.

- Antes dos Cadernos de Banda Desenhada, qual foi a última revista que coleccionou, acompanhando o ritmo da sua publicação?

- O Mundo de Aventuras.

- Tem alguma recordação especial ligada a qualquer das revistas que coleccionou?

- De especial só me lembro da dificuldade, em determinada época, que eu tinha para arranjar os cinco escudos para o Mundo de Aventuras.

- Terá havido, na sua infância ou adolescência, uma fase em que,num certo dia da semana, ia à rua de propósito para comprar uma revista de BD. Ocorre-lhe alguma recordação ligada a essa fase?

- Só me lembro de que, quando saía de propósito para comprar o Mundo de Aventuras e ele ainda não tinha chegado, eu ficava tão frustrado, tão frustrado... Nessa época posso dizer que vivia em função daquela revista. 

- Quais os heróis, ou séries, que lhe criavam uma tão grande expectativa?

- Não eram propriamente heróis ou séries. Era o conteúdo da revista, a forma como ela era feita.

- Qual o preço mais elevado que pagou por uma peça portuguesa, ou de outra qualquer nacionalidade?

- O que eu comprei mais caro foi recentemente. Trata-se dos dois volumes de Prince Valiant da Manuscrit Press. Custaram-me dezassete contos cada um.

- Como teve conhecimento dessa invulgar edição?

- Tive conhecimento dela em 1985, na revista americana Comics Scene nº4, de 1982, que fazia uma pequena reportagem, ainda antes de os livros terem sido publicados.

- E como é que os conseguiu adquirir?

- Quando li a reportagem, com três anos de atraso, fiquei com medo de que o livro (então só se anunciava a saída do primeiro) já estivesse esgotado. Além disso, na revista não era indicado o nome do editor e ela própria já tinha deixado de publicar-se.
Tive de andar atrás dele escrevendo para três outros editores americanos, enviando a cada um, uma cópia da carta para Rick Norwood, o autor dos livros, e pedindo-lhes que, se o conhecessem, lha entregassem.
Foi através de um deles, o Ross Cochran, que a carta chegou ao Rick Norwood e que depois este me escreveu, comunicando-me que já tinha sido publicado o 2º volume e o preço de ambos. Depois foi só enviar um cheque em dólares.

- Você, afinal, simples operário têxtil, tem-se abalançado a comprar peças de preços bastante elevados...

- É que sou fanático pelo Príncipe Valente, e na altura era solteiro.

- Qual é a peça mais valiosa que possui?

- São esses livros do Príncipe Valente, a colecção das pranchas publicadas n'O Primeiro de Janeiro, a edição de The Sunday Funnies e os Graphic Gallery.

- Mas eu sei que você tem muitas publicações especialmente dedicadas ao Príncipe Valente e a Hal Foster.
Gostaria que me dissesse os títulos dessa bibliografia que anda a reunir desde há muitos anos.

- Bem, não tenho assim tantas coisas. E muitas delas são fotocópias, como as de três números do Cartonist Profiles e as partes de livros sobre os Comics. Depois tenho um número da revista Nemo americana e outro de The Comics Journal com entrevistas; dois ou três números do Jornal do Cuto, alguns do Mundo de Aventuras, um Almanaque do Gibi Especial, o 1º volume da Serg, os sete da Slatkine (francesa), trinta da B.O. (espanhóis), o primeiro da Verlag Polischanky (austríaco), os quatro álbuns da Editorial Presença e outros tantos da Agência Portuguesa de Revistas, o também medíocre da Futura, todas as pranchas desenhadas por Foster publicadas n'O Primeiro de Janeiro, e mais nada de extraordinário, além do volume da Nostalgia Press.

- Colecciona álbuns de BD?

- Colecciono.

- Qual o critério que segue: colecções, autores ou personagens?

- Não tenho um critério certo. Por personagens, só mesmo o do Tenente Blueberry.

- Colecciona mais alguma coisa?

- Todos os livros que se escreverem, ou escrevem, sobre Jesus Cristo. E adaptações, em banda desenhada, dos Evangelhos.

- Conte-me um episódio pitoresco da sua actividade de coleccionador de BD

- Comecei a coleccionar o Príncipe Valente do Primeiro de Janeiro quando já ia na prancha quinhentos e tal. Durante muitos anos sonhei em ter todas as pranchas anteriores. Um dia, tinha eu ido ao Porto, fui até à Feira de Vandôma, a que ia sempre com a ideia de que um dia haveria de encontrar o que procurava, e apareceu-me uma pilha de páginas com as pranchas do Príncipe Valente, desde a nº1 até à 600 e tal, a um escudo cada. Claro, comprei-as todas, e nem acabei de ver a Feira: vim-me logo embora no comboio.

- Tem alguma recordação triste relacionada com as suas colecções?

- Lembro-me de uma história triste, mas que é ao mesmo tempo muito cómica.
Quando eu coleccionava as tiras de O Século, cheguei a uma altura que tinha já tantas, que o meu pai andava sempre a queixar-se que aquilo andava espalhado por toda a casa.
Eu cheguei a uma altura que me aborreceu de ouvir aquilo; furioso, meti-me no quarto e comecei a rasgar todas as tiras. E deitei-as ao lixo.
Quando o meu pai, logo de seguida, tomou conhecimento do caso, deu-me uma tareia. Esta é a parte cómica.
A parte triste foi que eu depois arrependi-me de ter rasgado as tiras. Donde se conclui que o meu pai teve razão ao dar-me a tareia.

- Qual o destino que prevê, ou que desejaria, para as suas colecções?

- Eu desejaria que fossem parar às mãos de quem as estimasse como eu as estimo. O que vai ser muito difícil.

- O que é que acharia ideal para que fossem preservadas as valiosas colecções que existem em poder de particulares?

- Eu não vejo nenhuma solução para isso. Nas bibliotecas não se pode confiar. E os coleccionadores também podem perder o interesse por elas numa determinada altura.

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(1) Fanzine: publicação de banda desenhada editada por amadores, geralmente com modesta qualidade gráfica e pequena tiragem.
No tema da BD, dividem-se em fanzines de banda desenhada e fanzines sobre banda desenhada, conforme se dediquem a publicar principalmente bandas desenhadas, ou, no segundo caso, dêem a primazia à publicação de estudos sobre a matéria. 
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Imagens que ilustram o post:

- Foster e Val Os Trabalhos e os Dias do Criador de 'Prince Valiant' primeiro livro escrito e editado por Manuel Caldas em Dezembro de 2006, posterior a esta entrevista

- Almanaque do Gibi Nostalgia 1&2, editado em 24 Junho 1975

- Capa do fanzine Nemo (Nº1 - Março de 1986)

- Revista americana Nemo (Nº1, 1983) 

- Página do jornal O Primeiro de Janeiro (nº 534 de 19/4/1959), edição de Domingo, com o início da publicação dominical da obra Príncipe Valente naquele jornal do Porto

- Páginas centrais do jornal portuense O Primeiro de Janeiro (nº 534 de 19/4/1959, edição de Domingo, com várias séries de BD.

- Mundo de Aventuras - Nº1 - V Série - 4 Out. 1973

- Foto recente de Manuel Caldas

- Páginas das revistas Coleccionando onde foi publicada a entrevista, vendo-se no início Manuel Caldas e a esposa a participarem num encontro da Tertúlia BD de Lisboa, no restaurante Chico Carreira (entretanto desactivado) no Parque Mayer

- Capa da revista Coleccionando (nº9 - 2ª série - Março/Abril 88), onde foi publicada esta entrevista, última da série.     

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Os visitantes interessados em ver os artigos anteriores deste tema poderão fazê-lo, clicando no item Coleccionadores e Colecções de BD visível no rodapé   

2 comentários:

Leónidas disse...

Há quase trinta anos, é verdade, mas foi apenas ontem.

Geraldes Lino disse...

Parece que foi ontem... Mas desde esse "ontem" até hoje, o tal Manuel Caldas, que muito bem conhecemos (tu, em especial) tem continuado a editar em grande quantidade e equivalente qualidade. Só é pena que, por motivos que o ultrapassam, esteja a editar directamente para o estrangeiro.
Abraço.